Ontem na Câmara Municipal de Ilhabela houve a não-audiência acerca do projeto dos novos trechos da ciclovia do arquipélago. «Não-audiência» porque o Executivo municipal não compareceu e, portanto, ninguém viu o projeto para discuti-lo. O noticiário completo pode ser lido
aqui.
Mesmo sem o projeto, sabe-se que a proposta da Prefeitura prevê novamente o uso da orla e a construção de uma ponte estaiada no mar, na Barra Velha. Sabe-se também que o custo será alto, sobretudo pelas dificuldades técnicas de implantar os novos trechos praticamente sobre o mar.
Algumas ponderações a respeito da ciclovia -- a atual e a que se pretende construir:
1)
Ciclovia no mar não, por favor. Mar é pra peixe, pra turista, pra banhista, pra criança, pra nadar e tomar sol, pra diversão e lazer. Já é suficientemente preocupante o fato de boa parte da orla ilhabelense ter sido tomada por casas, muros, píers. Passar uma ciclovia não apenas não reverterá este quadro como tomará ainda mais espaço que originalmente devia servir pra peixe, pra turista, pra banhista...
2) Além da questão do espaço, há também o fato de que o mar se revolta às vezes. Mesmo que a nova ciclovia seja uma jóia da engenharia, ela não será suficiente para compensar a (in)cultura brasileira, fortemente inclinada a
se lixar para a manutenção das vias públicas.
3) Não menos grostesca é a idéia de
marginalizar ainda mais os ciclistas, como se gostássemos de pedalar por caminhos ermos, pouco iluminados e monitorados. Quanto mais afastada das vias públicas a ciclovia estiver, pior para todos, principalmente para os ciclistas.
Sobre este último item vale a pena estender-me com algumas explicações.
Ciclovia deve ser exceção, não a solução habitual para oferecer algum conforto para ciclistas. Além de custosa e difícil, a construção de uma ciclovia estabelece um território de uso exclusivo para ciclistas. A maioria dos ciclistas acredita que isto é bom, mas não é.
A ciclovia é uma forma de oferecer conforto aos ciclistas, mas é também uma forma de excluí-lo do trânsito. Motoristas que não sabem lidar com a presença de pedestres e ciclistas no trânsito, continuarão não sabendo. Em outras palavras, uma ciclovia é uma excelente forma de dizer aos motoristas que eles continuam sendo os protagonistas do trânsito.
No Japão, um dos países em que a bicicleta é meio de transporte comum e seu uso é generalizado, raramente se vêem ciclovias. O que se vêem são calçadas largas nas avenidas e pedestres e ciclistas as compartilham, sem incidentes. O ciclista é livre para usar a avenida, desde que use capacete. Ruas menores não possuem calçadas, muito menos ciclovias: pedestres, ciclistas e automóveis dividem o mesmo asfalto, que no máximo recebe uma faixa indicando a porção mais adequada para os pedestres.
Pode-se dizer que lá é assim porque o povo japonês é educado. Surge aí o famoso dilema de Tostines: eu realmente não sei se o trânsito de bicicletas pode ser assim no Japão porque lá as pessoas são educadas ou se as pessoas são educadas porque foram expostas a situações em que a sobrevivência e o convívio nas áreas públicas dependia de um mínimo de educação. No caso de Ilhabela, diante de um dilema desses, opta-se pela segregação pura e simples. A visão ilhabelense é de que o ciclista é e deve continuar sendo um marginal mesmo. Dilema resolvido.
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A propósito da marginalidade inata do ciclista, vejam que belezura o folheto que foi distribuído à entrada do plenário da Câmara Municipal de Ilhabela (sem identificação da autoria), na noite da não-audiência:
As idéias defendidas são razoáveis. De fato, ciclovia na orla será uma barca furada (talvez, literalmente). No entanto, as ilustrações insinuam que o ciclista é a causa dos problemas citados, enquanto que a realidade é um pouco diferente.
Imagem 1 -- Riscos de acidentes
De fato, quando a ciclovia é construída entre a calçada e a praia, os riscos de acidentes existem,
como já indiquei várias vezes neste blog. Uns anos atrás a Prefeitura caiu na besteira de construir uma ciclovia desse tipo, ignorando esses riscos. Felizmente os acidentes envolvendo pedestres e ciclistas são raros, mas o risco permanece e pedestres continuam caminhando na ciclovia. Não há fiscalização, não há orientação, tampouco sinalização decente. A imagem do ciclista pedalando displicentemente, olhando para a moça de biquini não corresponde à realidade da maioria dos ciclistas, que também são vítimas de uma ciclovia pessimamente projetada. Uma ciclovia ruim e constantemente ocupada por pedestres obriga o ciclista a ficar mais atento (o que, obviamente, não é um argumento a favor de que se construam mais ciclovias ruins).
Imagem 2 -- Impacto ambiental e paisagístico
Por que diabos uma propriedade precisaria separar-se de uma ciclovia com alambrado, arame farpado e cão de guarda? Nada a favor de que se construa a ciclovia sobre a areia da praia, mas mais uma vez o ciclista é representado como o vilão, o inconveniente, o segregável. De qual mundo de sonhos veio essa imagem?
Imagem 3 -- Riscos de mortes e outros crimes
Alguém aí sabe o número de ocorrências criminais ocorridas na ciclovia atual? Será este número maior do que o número de ocorrências que ocorre nas ruas e calçadas de Ilhabela? Ou, talvez, o número de bicicletas roubadas e furtadas fora da ciclovia? «Prováveis» é um termo que demonstra descompromisso com a realidade; recorre-se às probabilidades somente quando não há dados suficientes -- alguém os procurou antes de compor esse panfleto? Ademais, na ilustração, o sujeito à direita é um ciclista-assaltante?!? Porca miséria.
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Perguntas necessárias, mas que, creio eu, permanecerão sem resposta:
1) Quantos ciclistas foram ouvidos para compor esse panfleto?
2) E para compor o projeto da nova ciclovia?
3) Quantos funcionários da Secretaria de Obras usam a bicicleta como principal meio de transporte?
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Ciclistas Urbanos de Ilhabela