Meu avô foi dono de uma das primeiras farmácias de Ilhabela, numa época em que o sistema de saúde pública dependia desses estabelecimentos e em que havia razões de sobra para confiar mais na tarimba de um veterano do que em médicos distantes demais para chegar a tempo.
Embora fosse criança demais, lembro mais ou menos como isso funcionava. Quando a farmácia estava fechada, havia uma placa do lado de fora indicando o telefone do farmacêutico (meu avô). As pessoas realmente telefonavam a qualquer hora da noite ou da madrugada, principalmente em feriados, quando os turistas desavisados percebiam que não havia hospitais em Ilhabela e que a Santa Casa, afinal, mal conseguia funcionar nos finais-de-semana. Ficar doente fora do horário comercial, em finais-de-semana e o feriado e nas madrugadas significa procurar o Seu Chico. As pessoas telefonavam e muitas vezes iam até sua casa buscá-lo para acompanhá-lo até a farmácia.
Isso aconteceu até meados dos anos 80. Quando vieram novas farmácias, a prefeitura decidiu criar um plantão, de modo que a população e os turistas sempre tivessem à disposição pelo menos uma farmácia. E o serviço pioneiro do Seu Chico poderia ser realizado também por outros farmacêuticos.
Na década de 2000 veio o Hospital Municipal. Alguns postos de saúde foram adequadamente equipados, outros foram construídos. O sistema de saúde pública se ampliou. Mais farmácias foram abertas. Hoje Ilhabela não é ainda um exemplo de excelência em serviços de saúde, mas muita coisa melhorou. O Seu Chico está aposentado e, de qualquer forma, resolver uma febre alta de madrugada não depende mais das farmácias.
Apesar disso, a Câmara está analisando o projeto de lei nº76/2007 ,de autoria do vereador Guilherme, que "dispõe sobre o regime de plantão de farmácias e drogarias existentes no município de Ilhabela e dá outras providências". Isso me deixa muito surpreso. Vejamos por que:
1) De um lado o Governo Federal limita cada vez mais as possibilidades de atendimento das farmácias, reforçando a idéia de que esses estabelecimentos devem-se limitar à comercialização de medicamentos. Tudo para evitar a automedicação.
2) De outro lado, o legislativo municipal propõe o inverso, sugerindo que uma pessoa doente que necessite de atendimento emergencial procure uma farmácia em vez de ir ao pronto socorro municipal (subentende-se que o plantão pretende justamente atender casos de emergência, que não podem esperar o horário de funcionamento normal dos estabelecimentos, de domingo a domingo, das 8 às 22hs.).
3) À parte a questão do atendimento de emergência, que é no mínimo esquisita, há a idéia de dar mais conforto àqueles que buscam atendimento não-emergencial. O sujeito pode, por exemplo, querer comprar xampu às 3 horas da madrugada. É um direito dele. Nenhum estabelecimento do mundo tem a obrigação de lhe atender. Se o atendimento vai acontecer ou não, depende mais de uma questão de oferta e demanda do que de uma lei municipal que fixe uma obrigatoriedade -- ou pelo menos deveria ser assim.
4) Assim, se o legislativo municipal propõe o retorno do plantão para casos de emergência é porque crê que uma farmácia deve ser obrigada a atender casos de emergência e sobrepor-se às autoridades médicas, existentes e devidamente estabelecidas no município.
5) Se o retorno do plantão pretende apenas atender casos não-emergenciais, então não há por que criar uma lei que obrigue as farmácias a qualquer coisa.
Além disso, há nessa história três itens de fundamental importância:
a) Não há números que comprovem a necessidade de plantão de farmácias. Não basta, naturalmente, sair à rua e perguntar às pessoas se elas gostariam que existisse plantão de farmácias; todas dirão que sim, sem pensar no número de vezes que precisaram desse serviço em alta madrugada nos últimos 12 meses. Um levantamento que pode ser feito é dos casos registrados no sistema de saúde pública no horário proposto para o plantão de farmácias e de quais destes casos poderiam ser resolvidos numa farmácia. Para começo de conversa. Esses números existem? Não. Mas o autor do projeto, médico conhecido e atuante em Ilhabela, certamente sabe algo que eu não sei.
b) Devemos nos lembrar da viabilidade de uma lei desse tipo. Legalmente tudo é viável, sim. Eu me refiro à viabilidade para as farmácias. Permanecer de portas abertas significa arcar com custos de manutenção (água, luz, limpeza), custos com funcionários (que deverão receber valores adicionais por trabalhar em horário não-comercial) e custos com segurança (manter portas abertas de madrugada significa expor o estabelecimento a riscos diversos). O plantão trará prejuízo aos estabelecimentos sem representar ganho significativo para a cidade. Afinal, quem ganha com o plantão? Passamos aqui ao terceiro item fundamental.
c) Se não há qualquer benefício com o plantão (casos emergenciais devem procurar um hospital, casos não-emergenciais podem esperar o expediente normal das farmácias), se as farmácias terão prejuízos e se a população não terá uma significativa melhora nos serviços de saúde, podemos nos perguntar sobre os objetivos de uma lei desse tipo. Por enquanto dispenso-me de levantar hipóteses, mas deixo o convite feito e área de comentários aberta, a quem quiser se manifestar.
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Apresento a seguir a íntegra do projeto. É especialmente ridículo o trecho que fixa que o plantão será determinado pelo Poder Executivo, como se esse tipo de decisão (ou pelo menos parte dela) não pudesse caber às próprias drogarias.
PROJETO DE LEI Nº 076/ 2007
“DISPÕE SOBRE O REGIME DE PLANTÃO DAS FARMÁCIAS E DROGARIAS EXISTENTES NO MUNICÍPIO DE ILHABELA, E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS”.
A CÂMARA MUNICIPAL DA ESTÂNCIA BALNEÁRIA DE ILHABELA, NO USO DAS ATRIBUIÇÕES QUE LHE SÃO CONFERIDAS POR LEI, APROVA:
Art. 1º - É obrigatório o funcionamento de uma farmácia ou drogaria, em regime de plantão, no período compreendido entre as oito horas de um dia até as oito horas do dia imediato, durante todos os dias da semana, inclusive aos sábados, domingos e feriados.
Art. 2º - O regime de plantão a que se refere o artigo anterior será supervisionado pela Prefeitura Municipal e obedecerá escala elaborada pelo Poder Executivo, em sistema de rodízio entre as farmácias e drogarias existentes no Município.
Parágrafo Único – A escala prevista no caput do presente artigo deverá ser elaborada de modo a assegurar o atendimento do público e a rotatividade entre os estabelecimentos.
Art. 3º - Todas as farmácias e drogarias existentes no Município deverão afixar obrigatoriamente, em lugar visível, inclusive quando estiverem fechadas, placa indicativa com o nome e endereço dos estabelecimentos congêneres que estarão de plantão e em regime de atendimento noturno.
Art. 4º - Em caso de infração aos dispositivos da presente Lei, estará o infrator sujeito às seguintes penalidades:
I – notificação;
II – multa;
III – perda do alvará de funcionamento.
Parágrafo Único - A multa a que se refere o inciso II será valorada em R$ 200,00 (duzentos reais), dobrada na reincidência.
Art. 5º - O Poder Executivo deverá regulamentar a presente Lei no prazo de 30 (trinta) dias, contados de sua publicação.
Art. 6º - Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.
Sala "Ver. MANOEL CLEMENTINO BARBOSA".
Ilhabela, 06 de junho de 2007.
GUILHERME HENRIQUE MAIA VIEIRA
(Dr. Guilherme)
Vereador – PMDB