sexta-feira, dezembro 21, 2012

Questão de prioridade

Faz alguma diferença se toda essa água estiver poluída?

Tenho visto amigos e concidadãos despendendo uma energia gigantesca em assuntos de importância duvidosa. Quem acompanha as discussões no Facebook deve ter visto longos debates sobre temas que vão do uso irônico de um logotipo até a implantação de um teleférico, passando por outros temas mais ou menos importantes.

Eu mesmo fiz minha parte nesse processo pestilento de atirar para todos os lados. Não apenas participei da discussão de temas como a aparência de uma fonte numa praça, como também questionei o uso indevido de placas de trânsito, inclusive registrando isto em ibagens -- dois temas que estão longe de ser estratégicos para o município.

Meus concidadãos mais engajados argumentarão que uma discussão sobre uma fonte é algo bastante importante, já que sua necessidade e sua utilidade eram de fato discutíveis e o dinheiro aplicado nela poderia ser usado para fins mais nobres. É claro que eu concordo com esse argumento, que pode ser aplicado a todos os temas, por menores que pareçam: o desperdício de placas de trânsito e a desordem causada por sua instalação indevida significam tempo e dinheiro público jogados fora, o que, num lugar que está longe de ser perfeito nas coisas essenciais, faz diferença.

A minha crítica, portanto, não se refere à discussão de temas aparentemente sem importância, mas à perda da noção de prioridade e do senso das proporções. Quem concentra suas energias intelectuais e discursivas em temas específicos demais facilmente perde de vista a noção de unidade que permeia os assuntos públicos. E assim nos expomos à possibilidade do governo silenciar a grita popular com ações simples, como a remoção de placas de trânsito e as reformas na cenografia urbana.

O que há por trás de todas essas ações? O que lhes dá unidade? O que poderia ou deveria ser priorizado?

Se não buscarmos respostas para estas questões, continuaremos discutindo na Internet sem perceber que estamos fazendo isso exatamente para poder continuar discutindo na Internet; continuaremos participando de discussões públicas em audiências sem perceber que esses eventos são organizados com o propósito de perpetuar um sistema decadente, que já está fazendo água há muito tempo. 

Ora, o que pode funcionar realmente? O que pode funcionar é criar cidadãos cada vez menos dependentes do governo. Como se faz isso?

Fala-se, por exemplo, da instalação de redes sem fio em toda Ilhabela. Ok, muito bom. Quem não tem acesso a internet rápida terá em breve. Mas o impacto positivo desta ação esconde os seus lados negativos:

1) Isso tem um custo que será pago com dinheiro público.
2) Colocar algum dinheiro público em redes sem fio significa colocar menos dinheiro público em outros setores -- e eu consigo pensar em pelo menos 10 itens mais importantes do que uma rede pública de acesso à internet.
3) Se você usa uma rede pública de internet, isto estabelece e reafirma um poder que antes não existia, pois antes a Prefeitura nada tinha a ver com sua rotina na internet, em breve passará a ter.

O problema é uma rede pública de acesso à internet? Claro que não. O problema está em tornar a Prefeitura o centro de hábitos que até bem pouco tempo não tinham centro.

Outro exemplo: há cerca de duas semanas eu me queixei de pedestres na ciclovia. Cada vez que um navio de passageiros chega, a ciclovia é tomada por pedestres. Ora, porra, pedale na rua, Christian, você sempre fez isso quando não havia ciclovia. Passe o recado uma vez a um fiscal de trânsito e, daí para diante, aja como se a Prefeitura não existisse. Qualquer cidadão livre e inteligente faria isso...

O que a Prefeitura tem a ver com seu hábito de pedalar? Rigorosamente nada. Você escolheu isso, você é responsável por isso, cabe a você encontrar as condições de continuar fazendo isso. A Prefeitura estabelece uma prioridade porque o próprio sistema democrático exige isso e a forma como o poder funciona sugere que as prioridades sejam preferencialmente as mais visíveis, as mais marqueteiras, as mais populares e populistas.

O máximo que se deve exigir de uma Prefeitura é que resolva aqueles itens que só um poder central poderia resolver e que são necessários para que os cidadãos resolvam por eles mesmos todo o restante. À parte estas prioridades, que apresentarei a seguir, vale a máxima de Henry Thoreau em seu paradigmático «Desobebiência Civil»: «o melhor governo é aquele que menos governa».

Eis os itens que considero prioritários:

1) Segurança

Ocorrem no Brasil todos os anos cerca de 50 mil homicídios. Isto é muito mais do que qualquer guerra que tenha ocorrido nas últimas décadas. Por exemplo, estima-se que a ação norte-americana no Iraque, que levou à queda da ditadura de Saddam Hussein, e os conflitos internos decorrentes disso causaram cerca de 20 mil mortes por ano entre 2003 e 2009.

Ilhabela, embora seja um lugar notadamente mais seguro do que outras cidades do litoral paulista, ainda está longe de ser uma exceção neste cenário de violência que caracteriza o Brasil há pelo menos três décadas.

Ademais, a violência é daqueles problemas que impedem o exercício da cidadania: se um sujeito ou membros de sua família são mortos ou se têm seus bens roubados ou se vivem sob risco ou ameaça constantes é evidente que essas pessoas não terão condições de resolver sozinhas aquilo que elas poderiam resolver sozinhas em condições normais. A violência é o pior flagelo que pode atingir uma sociedade.

Decerto há problemas que só podem ser resolvidos com ações mais amplas, em escala estadual e federal, como a ação de organizações criminosas e o tráfico de drogas. Mas todo crime, mesmo o organizado sempre ocorre em alguma cidade e é neste ponto que o poder público municipal pode e deve atuar, não apenas protegendo a população, mas principalmente ajudando a população a se defender. Orientação neste sentido e uma guarda municipal bem armada e sobretudo bem preparada seriam excelentes começos.

2) Saúde

Eu tenho minhas dúvidas com relação à obrigatoriedade do Estado oferecer serviços de saúde. Mas se a lei federal o obriga a isso e se o Estado se dispõe a fazê-lo em nível federal, estadual e municipal, que funcione adequadamente.

Quando se vêem ações de cenografia urbana realizadas em toda a cidade e, ao mesmo tempo, faltam medicamentos e profissionais num simplório posto de saúde e o simples agendamento de uma consulta leva meses até ser efetivado, sabemos que algo está muito errado.

A saúde também é um item estratégico, daqueles que determinam a possibilidade ou a impossibilidade dos habitantes de uma cidade resolverem por si mesmos todos os outros itens.

3) Praias e cachoeiras

Direta ou indiretamente Ilhabela depende de suas águas para viver. Dos rios e cachoeiras, porque é de suas nascentes que vem a água que abastece a cidade -- vivemos em uma ilha. Das praias, porque é delas que o turismo é feito e toda a economia da cidade depende direta ou indiretamente do turismo. O único «produto» de Ilhabela é também o seu bem mais frágil: o meio ambiente.

Acontece que nos acostumamos com as bandeiras vermelhas nas praias -- talvez porque tenhamos nos tornado imunes a micoses? duvido -- e fomos levados a crer que o turismo se basta com cenários bonitos e a gadgetização do mundo fez sua parte nisso, com câmeras digitais e com o compartilhamento de fotos na internet. Mas o turismo nunca se bastou com imagens. Fotógrafos, produtores e vendedores de postais seriam os grandes magnatas do turismo se as imagens bastassem.

O turismo não é feito de imagens, mas de experiências. Quando um turista é assaltado em Ilhabela -- e as ocorrências desse tipo são anormalmente comuns nos meses de verão e em julho -- é evidente que ele não terá mais intenção de voltar para cá. O mesmo ocorre quando um turista é maltratado num hotel ou num restaurante.

O processo que ocorre com as praias e as cachoeiras é mais sutil, mas não menos importante.

À medida que as praias e as cachoeiras são degradadas, as pessoas -- turistas, principalmente -- passam a se satisfazer cada vez mais com piscinas de hotéis e com experiências sem relação com o cenário natural de Ilhabela. No limite, cada vez menos pessoas encontrarão motivos para vir a Ilhabela, já que o que elas buscam (e que inevitavelmente encontram) são coisas que poderiam encontrar em qualquer lugar. Que diferença há entre estar numa piscina de hotel de luxo em Ilhabela ou numa piscina de hotel de luxo em São Paulo? Que diferença há entre adquirir um postal, abrir uma «imagem de divulgação turística» na internet e fotografar realmente o lugar durante uma viagem de lazer se a experiência que o fotógrafo teve com o lugar não tem a menor importância neste último caso?

Como nos dois itens anteriores, o problema das águas ilhabelenses não pode ser resolvido por cidadãos comuns. Certamente muita coisa pode ser feita, como a instalação de sistemas domésticos de tratamento de esgoto, o que reduz enormemente o risco de contaminação de lençóis freáticos e do mar (v. o bom exemplo do Porto Pacuíba Hotel, http://www.portopacuiba.com.br/sustentabilidade/). Mas de um modo geral, pouco adianta se uma residência é construída adequadamente e, ao mesmo tempo, dezenas de outras construções ao redor continuam contaminando o mar e os lençóis freáticos -- seja ilegalmente, com ligações clandestinas ou inexistentes, seja legalmente, através da rede de esgoto que termina num canal, não em mar aberto.

Não priorizar o problema da água é condenar a cidade aos problemas de abastecimento e, em médio ou longo prazo, condenar a já frágil economia ilhabelense.

***

O que há de comum entre estes três itens? Eles libertam em vez de aprisionar. Reparem que não incluí a educação, que é considerada por muitas pessoas como elemento essencial na condução e no desenvolvimento de uma cidade. A educação pode ser usada (e tem sido usada) como instrumento de reafirmação de uma certa ordem de poder. Não é, por assim dizer, um «serviço público libertador».

Os três itens acima são «libertadores». Decerto eles reafirmam o poder público em alguma medida -- sobretudo o primeiro item, que é o poder policial --, mas também libertam à mesma proporção. Uma população livre das ameaças da violência urbana e do receio de não ter auxílio médico nas horas mais críticas e cujo ambiente se mantém adequado para o desenvolvimento de suas atividades econômicas terá de fato mais condições de trabalhar e de viver suas próprias vidas. E uma população livre a esse ponto, independente do poder público em todos os aspectos, é o elemento decisivo para que haja de fato uma democracia digna deste nome.

Muito pouco é necessário além disso. Se tais coisas forem resolvidas adequadamente -- e para isso bastaria priorizá-las e cessar a orgia obrista -- certamente a cidade se conduzirá sozinha.

É claro que eu entendo que isso poderia se tornar um problema para qualquer político. Construir uma sociedade independente do poder público é a última coisa que um político quer -- sobretudo porque todos os políticos da atualidade dão mais importância a seus projetos de poder do que a projetos de cidade e de sociedade. Não sou irrealista ao ponto de crer que as coisas poderiam ser de outra forma, mas creio que seja tanto mais possível começar transformações quanto menores forem as escalas cívicas. Comecemos por nosso bairro e por nossa cidade, portanto.

3 comentários:

Guido Lorenzo Botto disse...

Parabéns por sua brilhante analise da situação Ilhabelense; ela é uma crítica perspicaz e inteligente, e e espero que seja lida e refletida por nossos cidadãos; seria muito bom podermos realizar alguns destes aspectos sociais tão importantes a melhoria de vida aqui na ilha.

Guido Lorenzo Botto disse...

Parabéns por sua brilhante analise da situação Ilhabelense; ela é uma crítica perspicaz e inteligente, e e espero que seja lida e refletida por nossos cidadãos; seria muito bom podermos realizar alguns destes aspectos sociais tão importantes a melhoria de vida aqui na ilha.

Vinicius disse...

Ola muito legal seu blog porque parou de postar ? se quiser podemos ate divulgara pra vc em nosso site pois seu conteúdo é muito bom !
Meu site é esse: http://guiapousadasemilhabela.com.br/