segunda-feira, dezembro 12, 2011

Notas sobre a ampliação do porto de São Sebastião


Eis uma coleção de anotações sobre a discussão do mês no Litoral Norte.

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Toda semana vou a Caraguatatuba, onde comecei a trabalhar uns meses atrás. Sabe o que vejo por lá? Uma cidade em efervescência.

Na memória trago imagens de Caraguatatuba de mais de vinte anos atrás. Era um lugar decadente. Àquela época era difícil imaginar que essa cidade poderia tornar-se algo além de mera passagem rodoviária para as demais cidades do Litoral Norte. Decerto Caraguatatuba não tem as belezas naturais das cidades vizinhas, mas hoje tem algo que elas não têm: mais de 100 mil habitantes, que infelizmente precisam consumir, deslocar-se e habitar e que inevitavelmente produzem lixo e esgoto.

O desenvolvimento econômico tem um preço, é claro, e com ele qualquer lugar fica exposto à avalanche de problemas urbanos que todos nós já conhecemos. A essência do que se convencionou chamar de «desenvolvimento sustentado» está justamente na possibilidade de obter desenvolvimento social e econômico sem esgotar os fatores que impulsionaram e que mantêm esse desenvolvimento.

O que torna o desenvolvimento sustentável possível? Três coisas:

1) governo disposto a aplicar o dinheiro público no bem público
2) população que preze o patrimônio social e ambiental
3) cultura e educação, somatória que dá origem aos dois itens acima

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Quem é contra a ampliação do porto de São Sebastião está fazendo a lição de casa? Eu queria saber:
  1. Quantas dessas pessoas foram à audiência sobre a ampliação do porto a pé ou de bicicleta?
  2. Mesmo que não usem estes meios de transporte, quantas pessoas estão realmente dispostas a usá-los?
  3. Quantas dessas pessoas votaram (ou ainda votam) no PT e no PSDB e em seus aliados?  
  4. Quantas dessas pessoas chegam a fazer campanha para estes dois partidos e para seus aliados? 
  5. Quantas dessas pessoas têm mais de um aparelho de TV em casa? 
  6. Quantas dessas pessoas consomem mais do que precisam? 
  7. Quantas dessas pessoas se esforçam para reduzir o consumo e a produção de lixo? 
  8. Quantas dessas pessoas realmente sabem qual é o destino do lixo e do esgoto produzido em suas casas?
  9. Quantas dessas pessoas ainda acreditam no aquecimento global?
  10. Quantas dessas pessoas acreditam que é preferível entregar a Amazônia às ONGs estrangeiras a permitir que ela seja administrada (e, possivelmente, devastada) pelas mãos dos próprios brasileiros?
  11. O que essas pessoas têm a dizer sobre a evolução da condição ambiental de Ilhabela nos últimos 40 anos? Elas se banham nas praias do Perequê, do Saco da Capela e do Itaguassu? Se não, por que? Se sim, quantas micoses e otites nos últimos anos? Que tal a fragrância de esgoto?
(Aliás, eu sou do tempo em que era possível tomar banho de mar na Vila.)

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Outra coisa igualmente histriônica é a repetição daquela grita patética: «Oh, meu deus, o Litoral Norte será afetado por mais uma onda migratória!» (na verdade as expressões usadas são um pouco menos elegantes, mas deixemos assim por enquanto).  Geralmente esses comentários são ouvidos de gente que cinco ou dez anos atrás estava às portas da crise de meia-idade num escritório paulistano, sem saber qual rumo tomar e/ou o que fazer com a casa de veraneio. Nada contra pessoas bem-sucedidas (porque eu também quero ser uma). Tudo contra a incoerência.

Eu realmente entendo toda a lógica do paternalismo, do populismo, da «importação de eleitores» e de outras picaretagens eleitorais e os problemas que isso traz. Ilhabela passou por isso ao longo dos anos 80 e 90 e não me surpreenderia se soubesse que isso continua acontecendo até hoje. Mas é fundamental perguntar: o direito que algumas  pessoas (em geral ex-veranistas) tiveram de escolher viver em Ilhabela é maior do que o direito que outras (a.k.a. trabalhadores braçais, profissionais sem qualificação ou expressões menos publicáveis) têm de fazer a mesma escolha?

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A principal utilidade de uma audiência pública é permitir que o governo avalie os riscos de perder votos na próxima eleição. Claro que também serve para aplicar mais uma vez a estratégia do «policial bom, policial mau»: se a proposta de ampliação do porto, recheada de benefícios fictícios, for considerada indecorosa demais, propõe-se algo um pouco menos indecoroso. Faz-se isso até que a população aceite alguma ampliação. Se 800 mil metros quadrados de laje não forem engolidos, 500 mil podem ser:

«Ah, 500 mil metros quadrados de laje tudo bem...», diz o sujeito que não imaginava que o plano incial era construir 300 ou 400 mil metros quadrados...

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Uma das coisas mais impressionantes em todas essas discussões é constatar que ninguém sabe quase nada. O que se sabe realmente?

Os órgãos públicos que estão propondo a ampliação do porto dizem que serão gerados empregos diretos e empregos indiretos. Alguma noção de quantos empregos serão perdidos? Alguma noção do valor dos empregos conquistados em relação às perdas (não apenas de empregos). Não, né?

Os críticos da ampliação do porto dizem que a obra vai causar a degradação total da região. A montagem veiculada pelo IIS é apocalíptica, irreal, risível, só faltou Hitler vestido de vermelho, segurando um tridente e posando na «foto». Alguma noção do impacto real da ampliação do porto na região? Não, né?

Como é possível levar adiante uma discussão em que os dois lados se apóiam apenas em suposições? A única possibilidade de tornar frutífera uma discussão dessas é abandonar os clichês, as suposições, os contos da carochinha, o catastrofismo verde, a empulhação desenvolvimentista, os discursos inflamados, os aplausos e as vaias e o espírito de torcida e olhar com atenção redobrada aquilo que realmente se sabe.

E o que se sabe efetivamente?

1) A ampliação do porto não é tão ameaçadora quanto dizem os ambientalistas, nem tão necessária quanto dizem as «otoridades». Por que digo isso? Por dois motivos:
  • Não tão ameaçadora: o impacto social, ambiental e econômico de uma obra desse porte não depende apenas da própria obra, mas de um conjunto de fatores. Além da obra há também legislação, fiscalização, vontade política, investimentos públicos, participação popular, eleições etc. Ademais, o risco mais provável é o do Litoral Norte tornar-se uma nova Baixada Santista: pode não ser desejável, mas não é exatamente o armageddon.
  • Não tão necessária: se fosse urgentemente necessária, o consumo interno (um dos principais argumentos dos desenvolvimentistas) já estaria dando os primeiros sinais de colapso. As «necessidades» são obviamente projetadas, o que significa dizer que não se sabe exatamente o que pode acontecer se o porto não for ampliado. Que tal priorizar outras coisas? Educação em vez de Copa, saúde em vez de Olimpíada, um pólo ecoturístico em vez de um porto -- para começo de conversa.
2) Sabe-se que os fatores ameaçadores têm pesado negativamente sobre o desenvolvimento de Ilhabela e das demais cidades da região há muito tempo. A lei funciona mal. A fiscalização é frouxa. A vontade política oscila em função do cronograma das eleições e de outros itens bem conhecidos. Os investimentos públicos com freqüência não vêem diferença entre inaugurar um hospital e mantê-lo funcionando bem. A participação popular também oscila. Muito pouco tem sido feito em relação a cada uma destas coisas: desperdiça-se energia com aquilo que pode ser enquanto que aquilo que realmente é um problema hoje continua sendo. Você toma banho de mar em qualquer praia de Ilhabela? Você caminha com total segurança em qualquer horário nas ruas ilhabelenses? Não há crime e trânsito no arquipélago? Não há construções irregulares? Pois é.

A turma pró-porto fala de desenvolvimento e de geração de empregos diretos e indiretos, como se nada disso pudesse ser obtido sem a ampliação do porto. A turma anti-porto fala do aumento da degradação ambiental, do aumento dos problemas urbanos, crime, violência, trânsito etc., como se essas coisas já não estivessem acontecendo há pelo menos 20 anos, sem que para isso haja qualquer influência das atividades portuárias da região.

Em resumo, os dois «times» reduzem suas falas a «projeções». Dá-se extrema importância àquilo que ainda não existe e pouca ou nenhuma importância àquilo que já existe e que realmente está trazendo problemas hoje, aqui e agora.

3) A obra de ampliação do porto pretende triplicar a capacidade de receber navios de carga. Esta obra será acompanhada de uma série de obras paralelas, como a duplicação da Rodovia dos Tamoios e, possivelmente, a abertura de outras vias. Não é possível estabelecer com precisão a qualidade dessas transformações, mas é evidente que as transformações do Litoral Norte virão, o que é uma outra forma de dizer que haverá perdas e ganhos e que, portanto,
  • só se tem certeza de algumas perdas, porque parte delas recai sobre o que existe hoje; 
  • sabe-se pouco sobre os ganhos, porque eles são potenciais, não reais, isto é, resumem-se a «estimativas» e conjecturas.  
Eu não tenho nada a favor de «ambientalistas» (que, obviamente, são diferentes de biólogos, ecólogos, geógrafos, engenheiros, gente que efetivamente estuda e trabalha para planejar e reduzir o impacto das ações humanas sobre o meio ambiente), mas não é difícil notar que o placar não é nada favorável à ampliação do porto de São Sebastião. Pelo menos a turma anti-porto sabe que a turma pró-porto não sabe quase nada sobre o lugar onde pretende fincar estacas -- aparentemente não sabiam nem que o Litoral Norte era uma região turística...

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E não é só isso...

1) A proposta de ampliação do porto de São Sebastião não surgiu por causa de uma demanda regional, muito menos local. Portos como o de São Sebastião não são infra-estrutura regional. A grosso modo, São Sebastião, Ilhabela e o Litoral Norte como um todo não precisam de um porto, mas o restante do Estado precisa. Na verdade, o Brasil todo precisa e você também precisa. Se o computador que você usa para ler este texto não foi fabricado no Brasil, ele ou seus componentes provavelmente vieram para o Brasil através de um porto, em containers. O mesmo vale para o carro que você dirige, para os eletrodomésticos na sua cozinha, até mesmo para roupas e outros objetos de uso cotidiano. A população aumenta, aumenta a festa do consumo. Infelizmente, para barrar definitivamente a ampliação do porto seria necessário reeducar a população de todo o Estado de São Paulo (e, provavelmente, do Brasil).

2) No início deste ano o Instituto Ilhabela Sustentável fez circular um manifesto que dizia o seguinte:
A terceira ameaça está na potencialidade portuária do canal de São Sebastião, e na descoberta do pré-sal que promete transformar nossa região de vocação eminentemente turística em um frenético corredor de exportação.
Oras, a transformação da região em corredor de exportação (e de importação) começou 50 anos atrás. Se a idéia é preservar, alguma coisa deveria ter sido feita no final dos anos 60, quando a Petrossauro, digo, a Petrobrás decidiu que o Canal de São Sebastião era o lugar ideal para a instalação de um terminal de descarga de petróleo. O porto de São Sebastião já estava funcionando desde os anos 50. A instalação do TEBAR foi, isto sim, o pior crime ambiental já cometido pelo governo (estadual, federal?) no litoral paulista. Tentem imaginar o que era o Canal de São Sebastião no anos 50, rodeado por duas cidades minúsculas sem expressão urbana/econômica -- «santuário ecológico» seria o termo adequado para definir esse lugar. A ampliação do porto de São Sebastião nada mais é do que a continuação natural desse movimento iniciado na década de 50 com a construção do próprio porto.

3) A discussão adequada não é sobre preservação vs. desenvolvimento, mas sobre como desenvolver causando menos danos. Desenvolvimento é um fato -- resta saber em qual direção estamos nos colocando e planejá-lo. Com Caraguatatuba passando dos 100 mil habitantes e com as demais cidades crescendo em proporções semelhantes, é totalmente ilusório imaginar que as quatro cidades do Litoral Norte serão eternamente aquilo que são hoje ou, ainda mais irreal, que poderão voltar a ser aquilo que eram nos anos 70 ou 80. Embora justos e necessários em alguma medida, protestos que reduzem as discussões ao plano de «preservação vs. desenvolvimento» trazem em si a noção boboca de que existe a possibilidade dessas quatro cidades não crescerem. Não, não existe. Tanto isto é verdade que 20 ou 30 anos atrás muitas das pessoas que hoje moram em Ilhabela ou não moravam em Ilhabela ou simplesmente não haviam nascido. Protestos e discussões mantidos no nível do maniqueísmo são totalmente improdutivos.

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Qual sua responsabilidade nisso?


Claro que isto não dispensa ações políticas, debates e manifestações públicas. Mas é fácil notar que quanto menos se sabe do seu próprio papel nessas engrenagens, tanto menos se saberá sobre tudo o mais quando for a hora de agir efetivamente e menor ainda será a sensatez nos momentos decisivos. Ou, como dizia Einstein, nenhum problema pode ser resolvido pelo mesmo grau de consciência que o gerou.

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2 comentários:

Rodolfo disse...

Olá, estava lendo seu texto sobre a ampliação do Porto, parabéns pela opinião com embasamento, também sou à favor do desenvolvimento com o mínimo de dano, e acredito que pelo menos as gestões atuais de Ilhabela e São Sebastião têm o mesmo pensamento. Crescer com sustentabilidade.

Christian Rocha disse...

Obrigado pelo comentário, Rodolfo.