sábado, março 03, 2012

Notas sobre ampliação do porto de São Sebastião II



Neste sábado, 3 de março de 2012, a sociedade civil de Ilhabela deverá fazer uma manifestação contra o projeto de ampliação do porto de São Sebastião. Oportunista que sou, permitam-me aproveitar o momento para oferecer novamente meus cinco centavos sobre o assunto.

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Dezembro passado escrevi algumas coisas sobre o assunto e ao final do texto concluí que o melhor é evitar não apenas o projeto de ampliação do porto, mas qualquer ação que implique mais «desenvolvimento regional» para o Litoral Norte. Coloco aspas em «desenvolvimento regional» porque quando se fala disto notamos desenvolvimento para setores específicos do Estado de São Paulo como um todo (indústrias, por exemplo) e um pesadíssimo ônus social e ambiental para a região que recebeu o magnífico empreendimento. Cubatão é um exemplo clássico dessa palhaçada estatal travestida de conto de fadas.

Não apenas em razão de exemplos trágicos como o de Cubatão, todos sabemos aonde o «desenvolvimento regional» leva e sabemos também que mesmo o melhor cenário futuro não será tão bom quanto o cenário atual e será infinitamente pior do que o cenário de 30 ou 40 anos atrás. Em outras palavras, o Litoral Norte está piorando e uma das propostas do Governo do Estado de São Paulo é acelerar este processo através da realização de obras que obviamente intensificam os fatores de degeneração social e ambiental. Genial.

Só que...

No Brasil, em todas as esferas, o governo tende a ganhar a queda de braço com a sociedade. Não sei se será assim desta vez. Manifestações em Ilhabela -- como a que acontecerá/aconteceu no sábado, 3 de março de 2012 -- parecem encontrar pouco eco em São Sebastião e quase nenhum nas outras duas cidades que fazem parte da região, mesmo que prefeitos da região sejam unânimes em recusar as obras propostas. Em Caraguatatuba, por exemplo, não é difícil encontrar entusiastas do desenvolvimentismo impulsionado pela Petrobrás a partir da construção da UTGCA (Unidade de Tratamento de Gás de Caraguatatuba). Afinal, agora eles têm um shopping center.

Além da aparente falta de consenso popular regional, há mais problemas que podem facilitar as ações governamentais. Muitos destes problemas estão relacionados à forma como as manifestações anti-porto têm sido realizadas. Outros problemas dizem respeito -- de forma simples e grave -- à própria compreensão da realidade.

Catastrofismo

O primeiro problema é o discurso apocalíptico adotado pela turma anti-porto. Note bem: por mais tenebrosas que sejam as perpsectivas, a ampliação de um porto não é o fim do mundo.

Santos possui em pleno perímetro urbano um dos maiores portos da América Latina. Como já escrevi uma vez, Santos não é exatamente o inferno na Terra. Não bastasse o alarmismo nos discursos, ele é ornado com imagens que, na mais bondosa das hipóteses, são montagens gráficas muito ruins.

É possível argumentar, claro: a Companhia Docas também ilustra seu monstrengo com montagens não menos desagradáveis e discutíveis. Sim, mas as peças gráficas do projeto da expansão do porto mostram apenas o projeto da expansão do porto, não os palpites dos cavaleiros do apocalipse ambiental. Em outras palavras, as peças gráficas do projeto do porto mostram o que se pretende realmente fazer. Já as montagens visuais dos manifestantes anti-porto são a expressão visual de uma suposição.

Neste sentido, o discurso apocalíptico e as montagens visuais dos manifestantes anti-porto não são diferentes do discurso dourado da Companhia Docas. Os dois mentem ou, pelo menos, ignoram parcelas importantes da realidade. A diferença é que a Companhia Docas sabe o que quer fazer. Os manifestantes anti-porto sabem o que querem preservar, mas não têm muita certeza do que querem evitar. É neste ponto que a «estratégia» das manifestações anti-porto escorrega: em vez de se pautar naquilo que pretendem preservar -- que é o que todo mundo conhece, vê e vive hoje -- pauta-se, ao invés, naquilo que poderá ser.

Se o discurso apocalíptico fosse o único meio de «dialogar» com os desenvolvimentistas pró-porto, eu entenderia. Mas quem tem todo um Litoral Norte de riquezas, quem tem à disposição a singeleza da Baía do Araçá e a exuberância do Canal de São Sebastião realmente não deveria ficar apelando para discurso de vidente em programa de auditório ou para o tom patético de um Al Gore falando de aquecimento global.

O problema, portanto, é discutir com o poder público nos termos deles. O discurso apocalíptico anti-porto e a baboseira pró-porto são uma espécie de yin-yang sem harmonia, a repetição ad-nauseam do duelo-clichê preservacionistas versus desenvolvimentistas, do qual os primeiros quase sempre saem perdendo. Fazem barulho, saem no jornal, sensibilizam a população que no início estava apática e alienada, mas no fim das contas saem perdendo.

Em vez de discurtir em audiências da carochinha a construção do porto, deviam levar as «autoridades» para um passeio em Castelhanos, na Cachoeira do Gato, no Bonete. Contra fatos não há argumentos.

Quem precisa de um porto e de uma rodovia?

O segundo problema também tem relação com o realismo -- ou, novamente, com a falta dele.

Revejamos: o Governo do Estado de São Paulo decidiu expandir o porto de São Sebastião e em paralelo construir uma nova rodovia e duplicar uma rodovia existente. Decidiu isso com o argumento de que é necessário desenvolver o Estado -- leia-se expandir/dinamizar/«dar um up» nas atividades econômicas. Por que? Porque é bom enriquecer.

Obviamente, quem mora no Litoral Norte não gostou muito da idéia: só nós vamos pisar na merda que a patota do governo pretende expelir no nosso quintal.

Não há proposta alternativa. O discurso é «não queremos o porto aqui porque não gostamos do porto e porque os benefícios não valem os danos que ele trará». Só que o Governo do Estado de São Paulo -- como todos os governos -- não funciona desse jeito, minha gente. Sigam comigo:

1) É necessário expandir a capacidade portuária do estado de São Paulo.
2) O Governo do Estado de São Paulo vai expandir essa capacidade portuária.
3) Se não for no Canal de São Sebastião, será em outro lugar. Onde?
4) As parcas possibilidades desse lugar não ser o Canal de São Sebastião dependem da capacidade de provar ao Governo do Estado de São Paulo que
a) O Canal de São Sebastião não é um bom lugar pra isso.
e/ou que
b) Há lugares muito melhores para expandir a capacidade portuária. Quais?

Para evitar este labirinto retórico e uma queda de braço com o governo (que, como indiquei acima, tende a ser vencida pelo próprio governo) seria necessário retornar ao primeiro item e mostrar (novamente para o governo), que não, não é necessário expandir a capacidade portuária do estado de São Paulo.

Não me parece que seja este o caso. Não disponho de todas as informações para discutir a necessidade de ampliação do porto de São Sebastião, mas sobre a assim chamada «rodovia do contorno», hoje, sem a ampliação do porto, há sinais de que a capacidade de vazão da BR-101 (aqui por estas bandas chamada de Rio-Santos) no trecho entre os centros de Caraguatatuba e de São Sebastião está no seu limite. As causas disso são muito simples: a principal delas foi o crescimento demográfico; todas as cidades da região cresceram muito e tendem a continuar crescendo.

Suponhamos que o porto não seja ampliado e que sejam mantidos os atuais níveis de movimentação de cargas. As cidades do Litoral Norte continuarão crescendo, é claro. Em algum momento o crescimento populacional inviabilizará não apenas as atividades do porto (mesmo que, como supusemos, estas atividades não sejam alteradas), mas também a própria circulação «doméstica» de veículos entre São Sebastião e Caraguatatuba. Como são, talvez, as duas cidades mais importantes do Litoral Norte, é claro que o colapso viário nestas duas cidades trará conseqüências para toda a região.

Para que esse colapso não ocorresse, seria necessário pelo menos «congelar» imediatamente todo o crescimento demográfico e urbano do Litoral Norte. Alguém realmente acha isto possível?

Se passarmos da escala regional para a escala do indivíduo, estas questões tornam-se ainda mais sérias e o leitor facilmente notará que muitas pessoas -- inclusive algumas que são totalmente contrárias as ações desenvolvimentistas do governo -- precisam, por exemplo, de combustível em seus carros, precisam circular entre as cidades do Litoral Norte, precisam de internet rápida e de certos confortos que inexistiam no Litoral Norte há 30 ou 40 anos atrás.

O que quero dizer é que o que está em questão não é a ampliação de um porto e a construção de uma rodovia, mas a perpetuação de um modelo sócio-econômico. Oras, é óbvio que a maioria das pessoas quer a perpetuação desse modelo (i) porque elas dependem desse modelo para viver e pagar as contas e (ii) porque não há outro modelo à disposição. Tanto isso é verdade que isso não é discutido, pelo fato simples de que não há meios de discutir isso. Em resumo, todas as manifestações anti-porto são mais ou menos assim:

-- Não queremos o porto e a rodovia no nosso quintal.
-- Onde vocês acham que devemos colocá-lo então?
-- Não é problema nosso.
-- Mas vocês, como outras pessoas do estado e do país, criaram as demandas que tornaram o porto e a rodovia necessários.
-- Não é problema nosso. Apenas não queremos porto e rodovia.


Realmente, o problema é de quem está propondo porto e rodovia, mas seria bom perguntarmos:

1) Há outras pessoas, em outras partes do litoral paulista, interessadas em ter um porto e uma rodovia nos seus quintais?

2) É possível mudar algo do modelo sócio-econômico que, aos olhos do poder público e de uma parcela da sociedade, torna portos e rodovias necessários?

Talvez o fato dessa pergunta não ter sido feita até agora seja um sinal de que todos -- até mesmo os mais radicais ecochatos -- querem as benesses de portos e rodovias, mas apenas não querem arcar com os problemas que eles inevitavelmente trazem, como se fosse possível ter omelete sem quebrar ovos...

Quando o governo ajuda

Ironicamente, o Litoral Norte só não se tornou uma porcaria total porque o mesmo Governo do Estado São Paulo que agora quer fazer porto e rodovia topou criar áreas de preservação permanente, como o Parque Estadual da Serra do Mar (2004) e o Parque Estadual de Ilhabela (PEI, 1977):

"No inverno de 1976, o Estadão trouxe uma reportagem de página inteira, dando conta que, na Câmara de Ilhabela, estava tramitando um projeto de lei de uso e ocupação do solo, dispondo sobre um novo zoneamento para o município, permitindo a ocupação das encostas de toda a Ilha de São Sebastião até a cota de 600 metros de altitude. Para se ter uma noção do que se trata, em Ilhabela são raras, hoje, as edificações localizadas acima da cota 120. Alarmado, o professor doutor José Pedro de Oliveira Costa, catedrático da USP que trabalhava na criação do Parque Estadual da Serra do Mar, levou a questão ao secretário estadual do Planejamento Jorge Wilheim, visto que naquele tempo nem secretaria do Meio Ambiente existia. Ambos decidiram que, a única maneira de colocar o arquipélago a salvo da especulação imobiliária seria a urgente criação de um parque estadual."

O trecho acima foi extraído do editorial do jornal Canal Aberto, com o título "Entre o Dramin e São Sebastião" (Ilhabela, 27 de junho de 2008. Editorial, p.2). A lei a que se refere o editorial é a lei municipal nº 63/1976, que “dispõe sobre o uso do solo no município de Ilhabela e dá outras providências”. A lei aprovada previa ocupação urbana até a cota planialtimétrica de 400 metros. Felizmente, com o decreto que criou o Parque Estadual de Ilhabela, a lei municipal nº 63/1976 simplesmente não foi colocada em prática. Anos mais tarde a lei municipal nº 98/1980 veio substitui-la definitivamente.

Então, o que fazer?

Se colocarmos os dois pés no chão e as emoções de molho por alguns instantes, perceberemos o seguinte:

1) O Governo do Estado de São Paulo não só acha o porto e a rodovia necessários como também acha que estas coisas são o último guaraná gelado do deserto. Devem até pensar que colocar um rinoceronte numa creche é uma grande ajuda.

2) Depois do «Fora Collor» em 1992, todas as esferas do poder público brasileira aprenderam a lidar com o populacho. Por este e por outros motivos, é pouquíssimo provável que manifestações populares dêem algum resultado.

3) Economia e cultura criam as bases conceituais que tornam um porto e uma rodovia necessários. Manifestar-se contra a construção de um porto e de uma rodovia sem combater enfaticamente aquelas bases conceituais -- economia e, principalmente, cultura -- é uma tremenda cagada. Como apontei no início, o poder público sabe o que quer fazer e os manifestantes anti-porto só sabem o que querem manter, mas discutem com base no que podem receber.

4) Por trás de entidades como a Petrobrás, a Companhia Docas e o Governo do Estado de São Paulo existem pessoas e seus respectivos interesses, às vezes mais pessoais do que projetos de impacto regional permitem supor. Porto e rodovia rendem muito dinheiro. Existe alguma chance de demonstrar a essas pessoas que não fazer o porto e a rodovia pode ser mais rentável do que os fazer? E demonstrar que rentabilidade é um conceito que não precisa ser medido só com números?

Estes quatro itens indicam que há poucas chances de fazer algo que possa ter efeito. Mesmo assim, creio que possamos fazer o seguinte:

1) O governador Geraldo Alckmin, cujo governo agora propõe a ampliação do porto, foi o mesmo governador que aprovou a criação do Parque Estadual da Serra do Mar. É um sinal de que ele (e/ou sua equipe) não é um «desenvolvimentista puro» e de que é capaz de ver o que está além da bobagem dos discursos catastróficos. Apesar de toda a aura que o poder público inspira, o governador é uma pessoa e sua equipe é formada de pessoas. Deve haver algum meio de acessar essas pessoas e conversar diretamente com elas. Além disso, muitas pessoas muito ricas e influentes têm propriedades em Ilhabela. Se há meios de acessar o governador e membros de sua equipe, essas pessoas muito ricas e influentes podem ser o melhor canal.

2) É possível mudar a economia e a cultura que criam bases conceituais que tornam um porto e uma rodovia necessários. É improvável que isso aconteça num curto ou médio prazo -- se formos contar com isso, o porto e a rodovia estarão prontos muito antes que algum sinal de mudança cultural e econômica seja percebida. Porém, agir neste sentido é uma forma de criar transformações que influenciam pessoas e as educam e, além disso, é difícil prever o impacto que certas ações causam. O que quero dizer é que é fundamental dar o exemplo. Manifestações públicas, com cartazes e discursos emocionados não são exatamente dar o exemplo.

3) A imprensa precisa ser colocada a nosso favor, em todas as escalas -- local, regional, estadual e nacional -- seja para divulgar as manifestações contrárias ao porto e à rodovia, seja para auxiliar na circulação de fatos simples e importantes, como as falhas do EIA-RIMA apresentado pelo Governo do Estado. A imparcialidade da imprensa sempre foi um mito e, afinal, jornais também são feitos de pessoas que têm preferências, ainda mais numa situação dessas.

4) Embora soe estranho, toda audiência pública com autoridades precisa ser precedida por um tour gratuito por Ilhabela para essas pessoas. Jipeiros e donos das empresas de turismo de Ilhabela estariam dispostos a fazer isso? Quem só tem olhos para o projeto do porto simplesmente não tem condições de compreender o que estamos tentando preservar. Só isto tornará possível algum diálogo entre grupos que até agora sequer falam o mesmo idioma.

Mesmo que nada funcione e o porto e a rodovia e tudo mais se realize, teremos feito nossa parte, teremos força e teremos preservado nossas consciências. Sem estas coisas é impossível uma vida digna, com ou sem ampliação do porto.

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2 comentários:

Ricardo Imakawa disse...

Fui um dos organizadores da manifestação de sábado, contra a ampliação do Porto. Quando cheguei em casa comecei a falar com meu pai sobre o tema e chegamos praticamente na mesma conclusão que a sua. Fiquei triste por alguns instantes, pois mesmo organizando uma manifestação, sabia desde o início que ela não pode mudar nada. Porém ainda acredito na força mídia que está mais democrática, graças a internet. Acredito que podemos chegar lá, com vídeos, fotos, etc.
Acredito também no Instituto Ilhabela Sustentável e suas ações contra o porto.
A partir desse pensamento conclui que a manifestação e todo esse trabalho de divulgação, não foi em vão e que devemos fazer mais e sempre em fazer uma propaganda contra o porto.
Bom essa é minha opinião.

Christian Rocha disse...

Olá, Ricardo.

Antes de tudo, obrigado por seu comentário.

Concordo com você integralmente. Por exemplo, se não houvesse a manfiestação talvez eu não tivesse escrito sobre a questão do porto e talvez não estivéssemos aqui nos comunicando.

Manifestações públicas não servem para aquilo que elas se propõem a conseguir, mas são instrumentos importantes no sentido de lapidar e consolidar a cultura que fará florescer soluções e alternativas para os planos mirabolantes do governo estadual.

A chave é, como você disse, fazer com que as informações circulem, dilvugar cada vez mais os inúmeros problemas associados à ampliação do porto e as inúmeras possibilidades que um plano decente de preservação cria (como no caso do santuário ecológico).

São coisas desse tipo que podem, inclusive, converter toda aquela energia da manifestação em consciência e conhecimento reais, virtudes obviamente raras entre as autoridades e especialistas que propuseram a ampliação do porto.