segunda-feira, junho 20, 2005

Caderno Cidades - O Estado de S. Paulo, 19 de junho de 2005

A beleza invadida e ameaçada
Luciana Garbin

Atlas mostra explosão populacional no litoral norte, antes quase inacessível, agravada pela invasão de turistas na alta temporada

Quem há 30 anos se arriscava a viajar para Ubatuba, Ilhabela, Caraguatatuba e São Sebastião tinha de enfrentar estradas tão precárias que muita gente preferia ir de barco. O isolamento, que contribuiu para a preservação da mata atlântica, acabou. Um dos campeões de crescimento populacional no Estado, o litoral norte deve fechar o ano com quase 270
mil habitantes - e cada vez mais ameaçado pela degradação ambiental.

Esse diagnóstico aparece em um atlas sobre a região que a Secretaria de Estado do Meio Ambiente lança no dia 23. Além de dados populacionais, o estudo aborda temas como a história da região, das unidades de conservação - que legalmente cobrem 70,2% do litoral norte -, da infra-estrutura e das comunidades indígenas, caiçaras e quilombolas. Além de detalhes do Zoneamento Ecológico-Econômico, aprovado em dezembro.

O atlas deve servir como base para futuros planos de gestão do litoral
norte. Algo vital numa região cuja população cresceu 43,5% nos últimos dez anos - a média do Estado foi de 15,9%. Em 1996, os quatro municípios tinham 187.914 habitantes. A projeção da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados e Estatísticas (Seade) para este ano é de 269.781.
Quase 11 vezes mais do que os 24.685 moradores dos anos 50. Isso sem contar os turistas, que multiplicam a população por quatro ou cinco na alta temporada.

"Com zoneamento, você não impede o desenvolvimento, mas o orienta", diz o secretário do Meio Ambiente, José Goldemberg, que aposta na medida para barrar o crescimento desordenado. Radiografia semelhante da Baixada Santista deve ser divulgada até o fim do ano. "Esperamos com isso dar publicidade ao que pode ou não fazer no litoral. Com a desculpa de não saber, o pessoal avança nas áreas de proteção."

Para Goldemberg, o que mais chama a atenção no litoral norte são os grandes empreendimentos imobiliários. "A pressão para loteamentos é enorme, alguns querendo construir até na areia da praia."

"No litoral norte se vai destruindo por pedacinhos", afirma o diretor da Fundação SOS Mata Atlântica, Mario Mantovani. "Tem o governo que quer modernizar o Porto de São Sebastião e criar corredor de desenvolvimento, o prefeito que libera quiosques na praia, as estradas que entram pelo sertão de Ubatuba, a legislação de mentira, os parques abandonados. O
contexto lá é de degradação."

Para quem conheceu a região bem antes de tudo isso, sobra uma certa amargura. "Quando cruzo o canal à noite, olho para trás e vejo Ilhabela toda iluminada como uma árvore de Natal; olho para a frente e vejo a mesma coisa em São Sebastião. Aí tenho saudades dos velhos tempos", diz o cantor Nahim, de 53 anos. Ele freqüenta o litoral norte há 35 anos e
na década de 70 ia de Bertioga a Barra do Una de motocicleta pela areia das praias.

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Impacto não é só ambiental, mas social e econômico
Luciana Garbin

A ocupação desordenada, estimulada pelo turismo e pela migração, não traz problemas só para a preservação da natureza. "Tem também o problema social, pois junto com a exclusão crescem os níveis de criminalidade", alerta Mario Mantovani, diretor da Fundação SOS Mata Atlântica. "E o custo econômico. Quando a população aumenta, o município precisa de mais
escolas, postos de saúde, saneamento básico. E todos os paulistas pagam a conta."

Em 2002, 94% da população do litoral norte era atendida por sistemas de abastecimento de água, mas apenas 37% tinham esgotos tratados e coletados. Outro desafio das prefeituras é atender a demanda de feriados e temporadas, sem que a infra-estrutura permaneça ociosa fora deles.

Espalhados ao longo da costa, condomínios de luxo nos sopés dos morros se juntam a construções precárias e irregulares nas encostas. Muitas áreas antigamente cobertas por vegetação nativa já estão lotadas de casinhas. Algumas ganham até nomes relacionados às principais correntes migratórias - em Ilhabela, por exemplo, já existem os Morros dos
Mineiros e dos Baianos.

"O migrante menos especializado chega, consegue um emprego para ganhar R$ 15,00 por dia, acha que vai se realizar. Mas, como os terrenos são caros, logo percebe que não terá dinheiro para comprar, invade uma área pública, geralmente de preservação. Sem dinheiro para fazer esgoto, começa a jogar na cachoeira. E a população que antigamente tomava água
ali não vai poder beber mais", diz Anselmo Tambellini, da Associação de Engenheiros e Arquitetos de Ilhabela.

Para piorar, agrava-se, segundo ele, o problema da especulação imobiliária, que se realiza no poder político, que se realiza na especulação, formando um círculo vicioso.

Reportagem do Estado mostrou em 23 de março dados de um laudo do Departamento Estadual de Proteção dos Recursos Naturais (DEPRN) apontando existência de lotes irregulares dos loteamentos Siriúba 1 e 2 dentro do Parque Estadual de Ilhabela. Entre as imobiliárias que realizavam negócios no local, estava a Ilhabela Imóveis, cujo sócio era o prefeito da ilha, Manoel Marcos de Jesus Ferreira (PTB).

Além de destruir as áreas naturais, a pressão imobiliária também tem ajudado, segundo informações do atlas do litoral norte, a expulsar comunidades tradicionais da região, desintegrar a cultura popular e ocupar áreas nobres com habitações irregulares.

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Belas praias atraem mansão e barraco
José Maria Tomazela

Atraídos por empregos, muitos moradores que chegaram ao litoral norte
nos últimos anos acabaram invadindo áreas de preservação


SÃO SEBASTIÃO - O ajudante de pedreiro Belmiro Alexandre da Silva, de 19 anos, não tem motivos para sentir saudades de sua terra, um lugarejo poeirento na região de Caruaru, Pernambuco. Desde que saltou de um ônibus na beira da Rio-Santos, em Barra do Saí, município de São Sebastião, há dois anos, ficou encantado com a beleza da praia, no
litoral norte de São Paulo - e também com Eliane, a filha do "patrão" e, por isso, tratou de ficar por ali.

Enquanto ele ajudava o sogro, o pedreiro paraibano José Barbosa da Silva, de 55 anos, na construção de uma das mansões que cercam a praia, erguia seu barraco na Vila Mosquito, do outro lado da rodovia. Do namoro com Elaine, nasceu Pedro Henrique, há 24 dias. Mas o barraco de madeira, pintado de verde, acabou embargado pela prefeitura. Não só ele, mas toda a vila, com mais de 300 casas e barracos que sobem a íngreme encosta da
Serra do Mar, área de proteção ambiental.

Vila Mosquito é uma das oito favelas declaradas Núcleo Congelado pela prefeitura. As outras são a Vila Baiana, também no Saí; Baleia Verde, na Praia da Baleia; Lobo Guará e Débora, na Praia de Camburi; Tropicanga, em Boiçucanga; Sertão, em Maresias; e Morro da Vaquinha, na Praia de Paúba.

Nesses bairros, é proibido construir, continuar obra iniciada ou reformar imóvel, sob pena de demolição. "São áreas invadidas, em locais de risco ou de proteção ambiental", explica a arquiteta Cláudia Lima, coordenadora do Programa de Congelamento dos Núcleos de Assentamentos Precários.

A casa da balconista Fernanda dos Santos Fischer, na Baleia Verde, também está interditada. "Chove dentro e não posso consertar", reclama. Fernanda é caiçara, nascida na região, mas o marido, o ajudante geral Fabiano, veio do Ceará e trabalha como segurança de um condomínio de luxo. Foi atraído à região pela fama de emprego farto, como a maioria dos 600 moradores.

As construções que margeiam a rodovia, entre Barra do Saí e Boiçucanga, não têm escritura. Mesmo assim, há placas oferecendo terrenos na área de proteção ambiental. Outro espaço protegido, a margem do Rio Juqueí, está sendo rapidamente ocupado. A fumaça no meio da mata atlântica denuncia desmatamentos. Ao longo da rodovia, há desmanches, depósitos de pedra e areia, ferros-velhos e barracos.

Com o projeto do governo estadual de ampliar o Porto de São Sebastião e duplicar a Rodovia dos Tamoios, já é esperado um grande aumento na corrente migratória. Outras cidades serão afetadas. No município de Bertioga, a vegetação que margeia a Rio-Santos foi suprimida em muitos pontos para a construção de hotéis, condomínios e pousadas. Nas imediações de Boracéia, grandes placas anunciam "terrenos com escritura" no meio da mata.

A comerciante Cristina Arruda, dona de uma imobiliária em Boiçucanga, conta que as vendas de imóveis de alto padrão caíram. "Mas se eu tivesse casas de R$ 40 mil, vendia tudo." A mudança no perfil da clientela está associada à chegada de pessoas de menor poder aquisitivo. Nos últimos anos, segundo ela, a localidade passou a ter favelas e núcleos
populares. O mesmo fenômeno ocorreu em Maresias, uma das praias mais badaladas do litoral norte. Como toda orla está ocupada, a expansão urbana ocorre em direção à serra; do outro lado da rodovia. "Já temos núcleos congelados, em área de preservação", conta Gilberto Tavares, que trabalha no setor imobiliário.

Na encostaEm Caraguatatuba, o aposentado Geraldo Barbosa, de 67 anos, comprou um
chalé por R$ 30 mil em um flat do Bairro Prainha, mas está preocupado. O prédio foi construído na encosta do morro. "Garantiram que não há perigo", diz. Sua vizinha, a microempresária Virgínia Garcia, também olha desconfiada o corte na encosta.

Mas o pedreiro Júlio Pereira da Silva, de 53 anos, garante que nada vai cair. "Fizemos um bom arrimo." Ele veio de Poá, interior de São Paulo, há dois anos, atraído pela fama local de empregos e tranqüilidade. Comprou um terreno, ergueu dois cômodos no Balneário Golfinho e se instalou com a mulher e 3 filhos pequenos.

Outro que chegou à procura de empregos, mas há cinco anos, foi o ajudante João Ferreira, mineiro de Ladainha. Ele e Cristobaldo Marques, de Ibimirim (PE), trabalham na construção de uma casa, na Prainha. Estavam com outra obra, ali perto, mas uma parte da encosta cedeu, atingiu casas e soterrou os lotes. A área foi interditada.

Mais um mineiro, Marcos José Bueno, de 22 anos, conseguiu emprego na portaria no Edifício Fontana de Trevi, na Praia Martim de Sá. Com 14 andares, é o maior prédio da região e projeta a sombra na areia. Mas a construtora teve problemas e a obra ficou parada três anos. Os compradores formaram uma associação, foram à Justiça e retomaram a construção.

O emprego na obra permitiu que Marcos formasse família. Ele tem uma filha de 2 anos e, nos fins de semana, trabalha com o pai, o vendedor José Edvaldo Ribeiro. "Os parentes que ficaram em Minas também querem vir."

Segundo o secretário de Urbanismo de Caraguatatuba, Leandro Borella, um novo Plano Diretor vai disciplinar o crescimento, a partir de 2006. Serão definidas áreas de restrições à ocupação. "Estamos trabalhando no projeto desde 2004, já prevendo o impacto da duplicação da Tamoios."

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Em Ilhabela, casa popular está vazia
Luciana Garbin

Denúncias de que conjunto da CDHU está em área irregular deixam obra inacabada

Um conjunto habitacional que poderia amenizar o problema de moradia em Ilhabela está vazio. Os prédios estão prontos, mas falta rede de esgoto e ainda não foram sorteados os 80 beneficiados, entre 840 inscritos. Mas o que mais tem dado o que falar são as denúncias de irregularidades em relação à área onde foi erguido o empreendimento - uma parceria entre a
prefeitura e a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU).

Na sexta-feira, o Ministério Público recebeu representação com pedido de apuração. E a assessoria da Casa Civil do governo do Estado também já tem um dossiê sobre o caso. O ponto mais polêmico foi o acordo feito entre a prefeitura de Ilhabela e um neto de José Esteves Rodrigues, antigo dono da área, que morreu em 1984. O terreno onde foram
construídos os prédios foi desapropriado e declarado de utilidade pública. Como o título da área pertencia ao espólio de Esteves, foi feita uma negociação com José Manoel Esteves de Castro, seu neto.

Segundo Castro, em agosto de 2001 a prefeitura lhe pagou R$ 15 mil pela área. Desse dinheiro, ele teve de depositar R$ 3 mil na conta do atual secretário jurídico do município, Odair Barbosa dos Santos, para tirar dois posseiros da área. Na escritura de desapropriação amigável, seu nome consta como outorgante, apesar de não ser inventariante do espólio.

"Não tenho idéia se eu poderia vender. Só sei que eles me procuraram e disseram que era absolutamente legal. Foi uma coisa feita a toque de caixa", diz Castro, lembrando que na época ainda acertou com Santos que seriam mandados outros R$ 75 mil para Mônica Angélica Holler, filha de Pedro Holler, também falecido, que havia comprado parte das terras de Esteves. "Só vendi um sexto da área para a prefeitura porque cinco sextos eram de Pedro Holler", diz Castro. Um representante de Mônica na ilha, que pediu para não ser identificado, diz, porém, que ela não recebeu nada da prefeitura.

Castro reclama ainda que, ao morrer, seu avô deixou 716 mil metros quadrados. Parte havia sido tomada pelo parque estadual e o restante foi invadido. "Tem gente construindo em terrenos da minha área e continuam me mandando IPTU."

Outra versão O secretário, porém, tem outra versão. Diz que, quando a área foi declarada de utilidade pública, uma pesquisa no registro de imóveis apontou o terreno no nome de Esteves, com compromisso de venda para Holler. Afirma ainda que nada foi mencionado a respeito de cotas. "Ele aceitou, recebeu, passou a escritura. Mas se a Mônica vier ao Brasil, uma vez regularizado o inventário, é sempre possível fazer acordo." A
respeito da invasão das terras, diz que a prefeitura não tem legitimidade para combater o problema.

A Assessoria de Imprensa da CDHU informa que a companhia só responde pela contratação da empresa para construir as moradias. "O terreno foi desapropriado e doado pela prefeitura, com aprovação da Câmara. A CDHU não teve ingerências nem responsabilidades na escolha", diz nota da assessoria, afirmando que na escritura de doação do terreno há uma cláusula que resguarda a companhia de eventuais problemas. Mais: pela escritura, se houver anulação da doação por irregularidades, a prefeitura é obrigada a repassar a área à CDHU.

A expectativa tanto da prefeitura quanto da companhia é entregar o conjunto até o fim deste ano. Santos diz que só falta licença ambiental da Cetesb para instalar o esgoto. Mas isso não deveria ter sido pedido antes? "Deveria, mas o plano inicial era erguer cem moradias, em três
pavimentos. A lei não permite três andares na cidade e houve uma grande polêmica. Como era preciso dimensionar o sistema de esgoto pelo número de casas, só pudemos pedir a aprovação há quatro meses."

A polêmica a que se refere ocorreu por causa de projeto de lei enviado à Câmara autorizando construção de três andares na ilha, o que, para moradores, poderia abrir precedente perigoso - houve abaixo-assinado contrário com 1.470 assinaturas e até investigação do Ministério Público.

A prefeitura teve então de retroceder e acertou com a CDHU a construção de 80 unidades, de 48,28 metros quadrados cada. O início da obra foi em 30 de abril de 2003, com um custo atualizado de R$ 3.574.421,41.

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De Américo Vespúcio à invasão da classe média

Dois anos depois da descoberta do Brasil, o navegador italiano Américo Vespúcio já passava pelo litoral norte. Foi ele quem deu à região ocupada por índios tupinambás e tupiniquins o nome de São Sebastião. Mas só no século 18 surgiram os primeiros engenhos de cana-de-açúcar. A produção de São Sebastião, bem como a da Vila de Exaltação Santa Cruz do Salvador de Ubatuba, seguia para o Rio e de lá para a Europa.

Além do açúcar, o litoral norte produzia fumo, aguardente, anil e óleo de baleia. E em Ubatuba caravelas embarcavam com destino a Portugal o ouro de Minas cunhado em Taubaté.

No fim do século 18, ordens do governador da Capitania de São Paulo para que a exportação fosse feita pelo Porto de Santos prejudicaram o litoral norte. Que só voltaria a experimentar um surto de prosperidade em meados do século 19, com a expansão da economia cafeeira, que usava os portos de São Sebastião e Ubatuba para exportar. Durou pouco. A construção das ferrovias São Paulo-Santos, inaugurada em 1987, e São Paulo-Rio, em 1877, deu origem a um longo período de isolamento, obrigando a população a dedicar-se a atividades extrativas, pesca, artesanato e agricultura de subsistência.

Foi graças a isso, porém, que o litoral norte escapou do processo de degradação verificado em boa parte do Estado. Até a abertura de estradas e a melhoria das velhas - como a Rio-Santos e a Tamoios nos anos 80, quando a região foi descoberta por turistas e por empresários.

A partir daí, a ocupação foi rápida. A chegada da classe média estimulou a construção civil e atraiu migrantes, sobretudo de Minas e do Nordeste, em busca de empregos.

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